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Meados
do ano de 1968.
Meus
olhos lacrimejaram de insatisfação ao sair de meu 'casulo'; confortável, mesmo
que pequeno. Sentia-me pesado, pois o leve toque da vida tinha engruvinhado
meus sentidos. Algumas pessoas que me cercavam e, de certa maneira, planejavam
uma vida pra mim, fitavam minha singela pele fina e branca. Talvez imaginando
como meu tudo se tornaria após alguns anos, ou quem sabe, apenas lisonjeando
por compaixão aquela mulher mãe que tinha coragem de trazer uma criança ao
mundo em tempos modernos, em tempos de guerras de paz.
Sorrateando
a sanidade, não entendi o que estava acontecendo e, nem me lembro. Essa fase da
vida são apenas ilusões.
- Que
lindo bebê!
-Oh!
Tem cara de artista!
-Tão
gorduchinho!
Que
bobagem, até hoje eu acho que os bebês são todos iguais. Penso isso talvez, por
nunca ter sido pai, nunca ter sido exemplo para uma pequena vida, por não ter
jogado bola pra perder... Mas, ainda bem, pois é a mãe que amamenta: quem dá
conforto; O pai, que tem o dever de ensinar as coisas fúteis da vida, nem
sempre pode estar presente, e isso pode ter motivo: não ter sentido o próprio
filho em seu ventre, ou pendurado em seus mamilos!? Ah, quem me dera ter tido
pensamentos soberbos como estes em momentos difíceis. Teria eu ditado um rumo
diferente à minhas tortas linhas? É talvez. Mas de nada me adianta fazer careta
ao passado, pois reclamações são todas inúteis quando não se pode mudar a
história de uma vida. Esse foi o caminho desenhado para mim e por mim. Deixarei
minhas reflexões do que não entendo e do que não me lembro do outro lado da
porta do inconsciente.
-
Parabéns mamãe, é um lindo menininho!
Desatei-me
a esperniar. Confuso pela mudança repentina de ambiente.
Minha
mãe apertou-me entre seus frágeis braços e murmurou:
- Bem
vindo ao mundo, meu pequeno Oliver.
Eu gostaria
de ter-lhe-á perguntado: "sim, mas quem é você?”, mas aprender a falar me
demorou mais cinco anos e a primeira palavra que eu disse a aquela linda mulher
não foi 'sim'.
No
início foi só emoção. Aquele negócio de filho pra cá, filho pra lá. Até mesmo
acordar no meio da noite era uma aventura eletrizante e o objeto dessa
aventura: o bebê - é um tesouro magnífico. Pois o começo de uma família é algo
único, como as primeiras linhas de um novo livro. Porém o maior problema de se
escrever livros é que não há como saber se vai dar certo ou se, um final feliz
completará a trama. Não existem perfeições literárias e, por mais originais que
pareçam ser as grandes criações dos escritores, os moldes são, de fato,
imperfeitos, conturbados e únicos tanto quanto eles mesmos em pessoa, em
família. Não existe livro algum nesse mundo que ouse ser escrito desacompanhado
dos rancores e admirações do passado familiarizado, assim como não há uma só
família nesse mundo que não deixe de fazer parte daquilo do que uma pessoa se
torna.
Foi assim, de maneira nada planejada que se
formou um 'Power-trio': composto por dois adultos bem diferentes e eu, um
inocente incapaz de modificar o ambiente no qual estava inserido. Desta fase
apenas ficou a sensação de frio e o vazio de minhas lembranças de berço, do
balançar de penduricalhos animados, do chacoalhar daquele negócinho com três
bolinhas coloridas com alguma coisa dentro que faz um barulhinho chato e instigador
até mesmo para um adulto e, do seio de minha mãe; que se mostrava tão
confortador e tão profano ao mesmo tempo.
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Morávamos
em uma pequena casa de madeira que ficava no subúrbio de Curitiba. Era uma casa
muito simples, que apesar da mania de limpeza de minha mãe, sempre estava cheia
de teias de aranhas nas paredes. Havia cinco cômodos, não me recordo dos detalhes
decorativos, mas ainda me lembro do cheiro de mofo que expelia do canto da sala
e da pouca iluminação de meu quarto. O sol batia apenas no lado esquerdo da
casa - acho que isso que ocasionava o mofo -, o arco-íris quase sempre
iluminava todo o quarteirão, menos nos dias de chuvas e tempestades curitibanas.
- Que
beleza!- Disse o homem a quem nunca chamei de pai. - Eu me matando de trabalhar
enquanto você fica aqui fingindo que sabe ser dona de casa.
Minha
mãe, que não tinha o hábito de engolir sapos, replicou:
- É
Roberto? Acho que alguém tem que fingir que sabe lavar suas cuecas e passar
suas camisas. - Falou quase que cantarolando de sarcasmo - E não se esqueça que
eu faço isso enquanto você finge ser um marido leal e um pai dedicado. Você já
deu um abraço no seu filho hoje?
Apesar
de eu não saber falar uma só palavra, sempre entendia quando eles estavam
discutindo, e o pior é que quase sempre sobrava pra mim, porque minha mãe era
muito decidida em suas palavras e meu pai sempre saía com o rabinho entre as
pernas e ao final dessas discussões vinha fingir pro meu lado. E esse foi o
modelo de homem ao qual a minha infância perturbada imitou: um homem cujo corpo
dizia a verdade e os olhos a mentira; um ser humano que fazia o coração bater
por paixões da carne. Mas essa não era a rotina do ‘seu Roberto’, como era
comumente chamado pelos vários amigos. Geralmente ele chegava em casa quando eu
já estava dormindo, sempre tarde da noite depois de fazer expediente na zona
junto as suas 'fiéis' amizades.
Roberto
bebia, bebia muito. Sinceramente eu o vi muito pouco em minha infância; o homem
o qual eu tentava imitar tinha olhos verdes e uma cicatriz bem aparente na
sobrancelha que ele dizia que era um retrato vivo da guerra da vida. Ele era
bonito, mas não apresentava jovialidade e isso era apenas um reflexo aparente
de não se ter ganhado o que quer. Com o breve passar do tempo, com o abuso do álcool
e das noitadas, a face bem delineada dele arredondou, e além dos traços
corporais os seus instintos afloraram; ele começou a bater na minha mãe. Mas
essa parte, desse homem, eu não imitei.
Minha
mãe estava cansada, cansada da vida que levava. Num certo dia de início de
primavera, minha mãe e eu largamos tudo na cidade e fomos esfriar os ânimos na
casa de meus avós, no campo. Lembro-me que minha avó me oferecia biscoitos
caseiros levemente queimados, mas que tinham um sabor especial: tranquilidade.
Enquanto meu avô me levava pra passear pelos campos e pelas bombacáceas. Era-me
divertido e empolgante ter espaço e segurança, mas não durou muito tempo.
Aquele bêbado precisava de minha mãe e foi procurá-la trazendo flores e falsas
desculpas que foram aceitas, acho que por pensarem em mim.
'A mãe
não quer separar o filho de um pai, mesmo que o indivíduo seja um traste, resta
a esperança da melhora, o otimismo é a fraqueza dos sonhadores.'
Voltamos
mais esperançosos à desconcertante cidade, e manteve-se a franqueza de boa vida
por algum tempo, mas aquele homem que tinha prometido honrar a família e largar
a boemia continuava a aprontar das suas; cada vez pior e cada vez mais
descaradamente. Mas minha mãe não era otimista quando a realidade batia em sua
porta.
‘Não
há otimismo suficiente para sustentar um sonho quando a realidade não deixa
mais sonhar’.
-
Acabou! Eu não agüento mais suas depravações. Tento todo dia, pelo bem dessa
família esquecer o que você me fez! Mas é impossível esquecer se todo dia você
me apronta uma.
Aquele
homem estava bêbado; e boa coisa não poderia dar aquela situação.
- Eu
faço o que quero! - Cambaleou e armou os braços para socar minha mãe. Antes
disse com o tom mais repugnante que existe:
-Mas
você não!
Foi um
grande soco. O corpo frágil de mamãe caiu no chão quase que no mesmo instante depois
do engatilhar do punho cerrado, o soco e o choque contra o rosto dela. Eu
fiquei observando o sentimento de remorso algum invadir a expressão daquele
homem que, sem palavras, pôs-se a sair rapidamente pela porta dos fundos e, só
depois de sua saída é que me desatei a chorar. Porém, eu soube mais tarde que
aquele não seria o maior 'soco' que minha mãe tomaria naquele ano.
No
natal de 1972 os dias e noites curitibanos estavam sendo acompanhados de um
calor infernal, era o que hoje entendo por 'efeito estufa', o aumento de gases
ofensivos à atmosfera. Isso fez com que muitos dos grã-finos da cidade
instalassem piscinas em suas casas, ou que fizessem reservas no próximo vôo
para Bariloche. Mas eu, eu não tive essa sorte.
'Os
médicos são os sofismadores do mal alheio'. Hoje eu entendo isso, mas não
entendi a palavra que dominou a triste vida de minha mãe: câncer! Mas percebi a
mudança repentina naquela pele branca e cansada que começara a enrugar, e a se
manchar com a cor do sofrimento. Era uma
luta contra o nada que podia se fazer; contra um diagnóstico impreciso.
Aparatos eletrônicos e exames que até hoje não consigo pronunciar. Tratamentos
doloridos e viagens quase toda a semana.
Nesse
instante mamãe precisou do apoio de todos a sua volta, até mesmo do bêbado com
quem um dia havia morado, entretanto, o mesmo escolhera o momento mais
importuno possível para fugir com uma puta saudável e cinco anos mais nova do
que minha mãe; que nada fez para impedir – acho que não era o momento dela ser
empática ao ponto de pensar na alegria dos outros -. Assim foi que enfim, minha
mãe ficou apenas com meus pequeninos braços que traziam até que certo conforto para
ela. Lembro-me também que Junto com esse ato, venho minha primeira palavra, que
me recordo como se fosse ontem:
-Não!
‘Não’.
Dito talvez para ser a afirmativa positiva de: não desista, não sofra, não chore, não
implore, não me abandone...
E tudo
o que minha mãe fez foi chorar, mas eu não à acompanhei, pois dentro de mim
fez-se incumbir um sentimento de realidade que até hoje aprecio como a bebida
dos deuses e dos profetas. Eu tinha apenas cinco anos e já me sentia como um
adulto, pois afinal eu havia conseguido, mesmo que obrigatoriamente; ocupei o
lugar de meu pai.
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