sexta-feira, 27 de julho de 2012

Motocicletas e balas de hortelã


(0* a 1)

Meados do ano de 1968.
Meus olhos lacrimejaram de insatisfação ao sair de meu 'casulo'; confortável, mesmo que pequeno. Sentia-me pesado, pois o leve toque da vida tinha engruvinhado meus sentidos. Algumas pessoas que me cercavam e, de certa maneira, planejavam uma vida pra mim, fitavam minha singela pele fina e branca. Talvez imaginando como meu tudo se tornaria após alguns anos, ou quem sabe, apenas lisonjeando por compaixão aquela mulher mãe que tinha coragem de trazer uma criança ao mundo em tempos modernos, em tempos de guerras de paz.           
Sorrateando a sanidade, não entendi o que estava acontecendo e, nem me lembro. Essa fase da vida são apenas ilusões.
- Que lindo bebê!
-Oh! Tem cara de artista!
-Tão gorduchinho!
Que bobagem, até hoje eu acho que os bebês são todos iguais. Penso isso talvez, por nunca ter sido pai, nunca ter sido exemplo para uma pequena vida, por não ter jogado bola pra perder... Mas, ainda bem, pois é a mãe que amamenta: quem dá conforto; O pai, que tem o dever de ensinar as coisas fúteis da vida, nem sempre pode estar presente, e isso pode ter motivo: não ter sentido o próprio filho em seu ventre, ou pendurado em seus mamilos!? Ah, quem me dera ter tido pensamentos soberbos como estes em momentos difíceis. Teria eu ditado um rumo diferente à minhas tortas linhas? É talvez. Mas de nada me adianta fazer careta ao passado, pois reclamações são todas inúteis quando não se pode mudar a história de uma vida. Esse foi o caminho desenhado para mim e por mim. Deixarei minhas reflexões do que não entendo e do que não me lembro do outro lado da porta do inconsciente.
- Parabéns mamãe, é um lindo menininho!
Desatei-me a esperniar. Confuso pela mudança repentina de ambiente.
Minha mãe apertou-me entre seus frágeis braços e murmurou:
- Bem vindo ao mundo, meu pequeno Oliver.
Eu gostaria de ter-lhe-á perguntado: "sim, mas quem é você?”, mas aprender a falar me demorou mais cinco anos e a primeira palavra que eu disse a aquela linda mulher não foi 'sim'.
No início foi só emoção. Aquele negócio de filho pra cá, filho pra lá. Até mesmo acordar no meio da noite era uma aventura eletrizante e o objeto dessa aventura: o bebê - é um tesouro magnífico. Pois o começo de uma família é algo único, como as primeiras linhas de um novo livro. Porém o maior problema de se escrever livros é que não há como saber se vai dar certo ou se, um final feliz completará a trama. Não existem perfeições literárias e, por mais originais que pareçam ser as grandes criações dos escritores, os moldes são, de fato, imperfeitos, conturbados e únicos tanto quanto eles mesmos em pessoa, em família. Não existe livro algum nesse mundo que ouse ser escrito desacompanhado dos rancores e admirações do passado familiarizado, assim como não há uma só família nesse mundo que não deixe de fazer parte daquilo do que uma pessoa se torna.
 Foi assim, de maneira nada planejada que se formou um 'Power-trio': composto por dois adultos bem diferentes e eu, um inocente incapaz de modificar o ambiente no qual estava inserido. Desta fase apenas ficou a sensação de frio e o vazio de minhas lembranças de berço, do balançar de penduricalhos animados, do chacoalhar daquele negócinho com três bolinhas coloridas com alguma coisa dentro que faz um barulhinho chato e instigador até mesmo para um adulto e, do seio de minha mãe; que se mostrava tão confortador e tão profano ao mesmo tempo.



                              (1 a 5)

Morávamos em uma pequena casa de madeira que ficava no subúrbio de Curitiba. Era uma casa muito simples, que apesar da mania de limpeza de minha mãe, sempre estava cheia de teias de aranhas nas paredes. Havia cinco cômodos, não me recordo dos detalhes decorativos, mas ainda me lembro do cheiro de mofo que expelia do canto da sala e da pouca iluminação de meu quarto. O sol batia apenas no lado esquerdo da casa - acho que isso que ocasionava o mofo -, o arco-íris quase sempre iluminava todo o quarteirão, menos nos dias de chuvas e tempestades curitibanas.
- Que beleza!- Disse o homem a quem nunca chamei de pai. - Eu me matando de trabalhar enquanto você fica aqui fingindo que sabe ser dona de casa.
Minha mãe, que não tinha o hábito de engolir sapos, replicou:
- É Roberto? Acho que alguém tem que fingir que sabe lavar suas cuecas e passar suas camisas. - Falou quase que cantarolando de sarcasmo - E não se esqueça que eu faço isso enquanto você finge ser um marido leal e um pai dedicado. Você já deu um abraço no seu filho hoje?
Apesar de eu não saber falar uma só palavra, sempre entendia quando eles estavam discutindo, e o pior é que quase sempre sobrava pra mim, porque minha mãe era muito decidida em suas palavras e meu pai sempre saía com o rabinho entre as pernas e ao final dessas discussões vinha fingir pro meu lado. E esse foi o modelo de homem ao qual a minha infância perturbada imitou: um homem cujo corpo dizia a verdade e os olhos a mentira; um ser humano que fazia o coração bater por paixões da carne. Mas essa não era a rotina do ‘seu Roberto’, como era comumente chamado pelos vários amigos. Geralmente ele chegava em casa quando eu já estava dormindo, sempre tarde da noite depois de fazer expediente na zona junto as suas 'fiéis' amizades.
Roberto bebia, bebia muito. Sinceramente eu o vi muito pouco em minha infância; o homem o qual eu tentava imitar tinha olhos verdes e uma cicatriz bem aparente na sobrancelha que ele dizia que era um retrato vivo da guerra da vida. Ele era bonito, mas não apresentava jovialidade e isso era apenas um reflexo aparente de não se ter ganhado o que quer. Com o breve passar do tempo, com o abuso do álcool e das noitadas, a face bem delineada dele arredondou, e além dos traços corporais os seus instintos afloraram; ele começou a bater na minha mãe. Mas essa parte, desse homem, eu não imitei.
Minha mãe estava cansada, cansada da vida que levava. Num certo dia de início de primavera, minha mãe e eu largamos tudo na cidade e fomos esfriar os ânimos na casa de meus avós, no campo. Lembro-me que minha avó me oferecia biscoitos caseiros levemente queimados, mas que tinham um sabor especial: tranquilidade. Enquanto meu avô me levava pra passear pelos campos e pelas bombacáceas. Era-me divertido e empolgante ter espaço e segurança, mas não durou muito tempo. Aquele bêbado precisava de minha mãe e foi procurá-la trazendo flores e falsas desculpas que foram aceitas, acho que por pensarem em mim.
'A mãe não quer separar o filho de um pai, mesmo que o indivíduo seja um traste, resta a esperança da melhora, o otimismo é a fraqueza dos sonhadores.'
Voltamos mais esperançosos à desconcertante cidade, e manteve-se a franqueza de boa vida por algum tempo, mas aquele homem que tinha prometido honrar a família e largar a boemia continuava a aprontar das suas; cada vez pior e cada vez mais descaradamente. Mas minha mãe não era otimista quando a realidade batia em sua porta.
‘Não há otimismo suficiente para sustentar um sonho quando a realidade não deixa mais sonhar’.
- Acabou! Eu não agüento mais suas depravações. Tento todo dia, pelo bem dessa família esquecer o que você me fez! Mas é impossível esquecer se todo dia você me apronta uma.
Aquele homem estava bêbado; e boa coisa não poderia dar aquela situação.
- Eu faço o que quero! - Cambaleou e armou os braços para socar minha mãe. Antes disse com o tom mais repugnante que existe:
-Mas você não!
Foi um grande soco. O corpo frágil de mamãe caiu no chão quase que no mesmo instante depois do engatilhar do punho cerrado, o soco e o choque contra o rosto dela. Eu fiquei observando o sentimento de remorso algum invadir a expressão daquele homem que, sem palavras, pôs-se a sair rapidamente pela porta dos fundos e, só depois de sua saída é que me desatei a chorar. Porém, eu soube mais tarde que aquele não seria o maior 'soco' que minha mãe tomaria naquele ano.
No natal de 1972 os dias e noites curitibanos estavam sendo acompanhados de um calor infernal, era o que hoje entendo por 'efeito estufa', o aumento de gases ofensivos à atmosfera. Isso fez com que muitos dos grã-finos da cidade instalassem piscinas em suas casas, ou que fizessem reservas no próximo vôo para Bariloche. Mas eu, eu não tive essa sorte.
'Os médicos são os sofismadores do mal alheio'. Hoje eu entendo isso, mas não entendi a palavra que dominou a triste vida de minha mãe: câncer! Mas percebi a mudança repentina naquela pele branca e cansada que começara a enrugar, e a se manchar com a cor do sofrimento.  Era uma luta contra o nada que podia se fazer; contra um diagnóstico impreciso. Aparatos eletrônicos e exames que até hoje não consigo pronunciar. Tratamentos doloridos e viagens quase toda a semana.
Nesse instante mamãe precisou do apoio de todos a sua volta, até mesmo do bêbado com quem um dia havia morado, entretanto, o mesmo escolhera o momento mais importuno possível para fugir com uma puta saudável e cinco anos mais nova do que minha mãe; que nada fez para impedir – acho que não era o momento dela ser empática ao ponto de pensar na alegria dos outros -. Assim foi que enfim, minha mãe ficou apenas com meus pequeninos braços que traziam até que certo conforto para ela. Lembro-me também que Junto com esse ato, venho minha primeira palavra, que me recordo como se fosse ontem:
-Não!
‘Não’. Dito talvez para ser a afirmativa positiva de: não desista, não sofra, não chore, não implore, não me abandone...
E tudo o que minha mãe fez foi chorar, mas eu não à acompanhei, pois dentro de mim fez-se incumbir um sentimento de realidade que até hoje aprecio como a bebida dos deuses e dos profetas. Eu tinha apenas cinco anos e já me sentia como um adulto, pois afinal eu havia conseguido, mesmo que obrigatoriamente; ocupei o lugar de meu pai.



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